Canção
Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas
Umas vivem em palácios, outras em mansardas;
contudo não há lugar para nós, minha querida, não há lugar para nós.
Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.
Olha para o mapa e lá a encontrarás;
mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não podere-
mos regressar tão cedo.
O cônsul deu um murro na mesa e disse:
se não têm passaportes estão oficialmente mortos;
mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.
Lá em baixo no adro um velho teixo
todas as primaveras floresce de novo:
e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhos
passaportes não florescem.
Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira.
disseram polidamente para voltar no ano seguinte:
mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?
Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:
se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;
estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.
Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?
É Hitler sobre a Europa dizendo: «Eles têm de morrer!»
Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos no
Seu pensamento.
Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinete
vi uma porta aberta e um gato entrando;
mas não eram judeus alemães, minha querida, não ale-
mães.
Desci ao porto e parei no cais
vi os peixes a nadar. Como são livres!
a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés distância
Passeei pelo bosque; há pássaros nas árvores,
não têm políticos e cantam livremente.
Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humana
Sonhei que vira um edifício com mil andares
mil janelas e mil portas;
nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhuma
Corri à estação para apanhar o expresso,
pedi dois bilhetes para a Felicidade;
mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas as
carruagens estavam cheias.
Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cair
dez mil soldados marchavam de um lado para o outro
olhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim e
para ti.
W. H. Auden
(1907-1973)
Reino Unido
TRAD.:Jorge Emílio
Rosa Do Mundo
2001 POEMAS PARA O FUTURO
Assírio & Alvim