Sábado, 15 de Maio de 2004
Primavera
Foi isto que vi - restos de neve no chão,
Três melros a espanejar-se,
E a minha vizinha que sai de casa em combinação
A pôr camisas do marido a secar.
A aragem da manhã torna-lhe difícil pendurá-las.
Levanta-lhe a roupa bem acima dos joelhos,
Ela teve de parar o que estava a fazer
E deu uma bela gargalhada, enquanto se tapava.

Charles Simic
tradução de José Lima
Segunda-feira, 10 de Maio de 2004
PRÉVEZA
São de morte estes corvos ao voarem
De encontro aos negros muros, ao telhado,
São de morte as mulheres ao amarem
Como quem preparasse um refogado.
De morte as ruas sujas e mesquinhas
Com nomes tão sonantes e tão fortes,
O olival, que abraça o mar, as vinhas,
E até o próprio sol, morte entre as mortes.
De morte o inspector que quer levar
Para análise a dose..."ilegal".
Na varanda os jacintos a espreitar
E o mestre escola lendo o seu jornal.
Da guarda o pelotão no forte branco,
Domingo toca a banda no coreto,
Com "dracmas trinta" abri conta no banco,
Fui hoje lá buscar a caderneta.
Vais pelo molhe e pensas devagar:
"Será que sou?" E dizes: "Não, não és".
Chega o barco, a bandeira a tremular.
Vem decerto o pefeito no convés.
Ai se ao menos por tédio um habitante
Se deixasse morrer neste desterro,
Para toda a gente ir, grave o semblante,
Negro o luto, entreter-se no enterro.

Kariotákis
tradução de Manuel Resende
último poema antes do suicidio
Domingo, 9 de Maio de 2004
Profundo e Límpido
O céu é tão límpido, que tudo se funde em luz.
O dia, tão quente, como se acabasse de ser criado.
E, no entanto, a água nunca deixou de murmurar,
O vento, de pentear as ervas, o riacho, de polir as pedras.
A roda abstracta da cavalinha é velha,
Velha... A percepção é jovem, acabada de nascer.
O céu é tão límpido, que um pássaro transparece,
A água tão profunda... E o resto é acaso.

Eeva-Liisa Manner
tradução de Manuel Resende
Sábado, 8 de Maio de 2004
GENTE SEM RAÍZES
Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e se esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fito o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por ir enclausurar-nos nos fundos duma taberna,
sozinhos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem os seus sonhos
(com o ruído do mar, os sonhos são um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
de colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isto. Vê-se, ao olhar para dentro do copo,
a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.
Eu vejo somente as colinas e enchem-me o céu e a terra
com as linhas seguras dos seus perfis, longínquas ou próximas.
Mas as minhas são ásperas, estriadas de vinhedos
que penosamente crescem num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
mas quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir risonhas raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: nos meus sonhos mais ásperos não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho
e formos a essas colinas, poderemos encontrar no meio das vinhas
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer das suas uvas.

Cesare Pavese
tradução de Carlos Leite