Domingo, 28 de Março de 2004
Auto-retrato
Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.
Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.
Oculto nele e nele convertido
do tempo ido excusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;
E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Ana Hatherly
A Idade da Escrita, Lisboa, Edições Tema, 1998
Balada ditirâmbica
do pequeno e do grande filho-da-puta
I
o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.
no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.
o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.
no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.
todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.
é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.
II
o grande filho-da-puta
também sem certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande
filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.
por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.
todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.
é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multipliccação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta.

Alberto Pimenta
Domingo, 21 de Março de 2004
DESPERTA-ME DE NOITE
O TEU DESEJO
NA VAGA DOS TEUS DEDOS
COM QUE VERGAS
O SONO EM QUE ME DEITO
É REDE A TUA LINGUA
EM SUA TEIA
É VICIO AS PALAVRAS
COM QUE FALAS
A TRÉGUA
A ENTREGA
O DISFARCE
E LEMBRAS OS MEUS OMBROS
DOCEMENTE
NA DOBRA DO LENÇOL QUE DESFAZES
DESPERTA-ME DE NOITE
COM O TEU CORPO
TIRAS-ME DO SONO
ONDE RESVALO
E EU POUCO A POUCO
VOU REPELINDO A NOITE
E TU DENTRO DE MIM
VAI DESCOBRINDO VALES.

Maria Teresa Horta
Sábado, 20 de Março de 2004
Resistir
Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar a pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro
Possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.

Joaquim Pessoa, in "Paiol de Pólen"
Virá de Noite...
Virá de noite quando tudo dorme,
virá de noite quando a alma informe
se embuça em vida,
virá de noite com seu passo quedo,
virá de noite e pousará seu dedo
sobre a ferida.
Virá de noite e seu fugace lume
volverá luz todo o fatal queixume;
virá na treva,
com seu rosário, soltará as contas
do negro sol, que dão cegueiras prontas,
e tudo as leva!
Virá de noite que é mãe, caridade,
quando no longe ladre a saudade
perdido agouro;
virá de noite; apagará seu prazo
mortal latido e deixará o ocaso
vazio de ouro...
Virá uma noite recolhida e vasta?
Virá uma noite maternal e casta
de lua plena?
E virá vindo num devir eterno;
virá uma noite, derradeiro inverno...
noite serena...
Virá como se foi, como se há ido
- ressoa ao longe o fatal latido -,
não faltará;
será de noite mais que quando aurora,
virá na hora, quando é o ar quem chora,
e chorará...
Virá de noite, numa noite clara,
noite de lua que ao sofrer ampara,
noite desnuda,
virá, virá... vir é porvir... passado
que passa e queda e que se queda ao lado
e nunca muda...
Virá de noite, quando o tempo aguarda,
quando uma tarde pelas trevas tarda
e espera o dia,
virá de noite, numa noite pura,
quando do sol o sangue se depura,
do meio-dia.
Noite há-de ser enquanto venha e chegue,
e o coração rendido se lhe entregue,
noite serena,
de noite há-de vir... quem há-de vê-lo?
De noite há-de selar seu negro selo,
noite sem pena.
Virá de noite, aquela que dá a vida,
e em que na noite ao fim a a alma olvida,
trará a cura;
virá na noite que nos cobre a todos
e espelha o céu nos reluzentes lodos
em que o depura.
Virá de noite, sim, virá no escuro,
seu negro selo servirá de muro
que encerra a alma;
virá de noite sem fazer ruído,
apagar-se-á nos longes o latido,
virá a calma...
virá a noite...

MIGUEL DE UNAMUNO
Toca, minha amiga,
as cordas puras da tua lira.
Já a idade fez secar meu corpo,
embranquecendo-me os cabelos que eram pretos,
tornando-me os joelhos mais que frouxos.
E agora, ó companheira bem amada,
querem levar-te para longe do meu peito,
como fazem também às jovens corças.
Adoro, mais que tudo, a flor da juventude.
Meu coração apaixonou-se pelo sol,
meu coração apaixonou-se pela beleza.

Safo
Hora grave
Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.
Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.
Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.
Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha para mim.

RAINER MARIA RILKE
(Tradução de José Paulo Paes)
Bacanal
Carneiro de 125 pesetas,
caracóis abundantes, manuais como o ventre da mulher de 150 pesetas;
os pães que o pobre come
podem ser amassados desse ventre
e cozidos com fogo de polegares.
Quando cruzamos os polegares para formar uma harpa
renova-se o martírio de S. Bartolomeu,
que, souberam depois, era um diabo
ou um fauno
que se ria da cruz.
Ao morrer comeram-no umas formigas de ouro
que tinham carne de moura
e cu de bailadeira.
S. Bartolomeu e o fauno dançavam
enquanto as pedras saíam disparadas da terra
como beijos atirados com a ponta dos dedos.
Do túmulo de S. Bartolomeu sai uma espiga de bronze
por cada beijo que pôde e não quis roubar.

LUIS BUÑUEL
tradução de Mário Cesariny
Sexta-feira, 19 de Março de 2004
A um poeta
Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,
Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afuguentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental
O MUNDO É GRANDE
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE