Sábado, 31 de Janeiro de 2004
Tudo foi dito cem vezes
Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba

Boris Vian
canções e poemas
Ilha
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

David Mourão-Ferreira
Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2004
Gota de Água
Eu, quando choro.
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

António Gedeão
Quarta-feira, 21 de Janeiro de 2004
(o navegador)
Plena, a cidade
navega o dia. Ao lado,
o mar em que verte.
Passa lentamente,
à sombra, imposta,
do seu meridiano.
Só um vidro faísca:
há séculos emite
sinais indecifráveis.

Sebastião Alba
Uma Pedra ao Lado da Evidência
Canpo da poesia
Campo das Letras
Terça-feira, 20 de Janeiro de 2004
É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?
Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regresserei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti
é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.

Manuel António Pina
Poesia Reunida
Assírio e Alvim
Sábado, 17 de Janeiro de 2004

poema
A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é o silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos
tradução de Herberto Helder
Doze nós numa corda
Assírio e Alvim
Autoelegía
" Mi forma, mi carácter mi deseo,
pensando que la noche azul se ponga
no sueño nada en detrimento mío,
la corona que tengo en la cabeza
la soporto con gran resignación,
soy un rey desterrado en un retrete,
no tengo pantalones y me escondo
debajo de mi cama muerto de hambre,
me alimento de muchas musarañas,
la casa apuntalada de mis versos
es todo mi dominio personal,
y se orina mi alma por mis ojos,
si medito me duermo en un rincón
y el sueño que podía serme útil
se mete en una pierna y no sé en cuál,
mi candor, mi paciencia, mi descuido,
busco trabajo y pierdo mi salud
rezando mientras subo la escalera. "
Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2004
Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
29-03-1935
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Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
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Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
29-03-1935

Fernando Pessoa
Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I, Tomo V. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
poemas menos conhecidos...
Terça-feira, 13 de Janeiro de 2004

Qui suis-je?
D'où je viens?
Je suis Antonin Artaud
et que je le dise
comme je sais le dire
immédiatement
vous verrez mon corps actuel
voler en éclats
et se ramasser
sous dix mille aspects
notoires
un corps neuf
où vous ne pourrez
plus jamais
m'oublier.
Antonin Artaud
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre ONeill, in No Reino da Dinamarca
Quanta falta nos fazem poetas como este, com a intrasigência dos sentimentos
Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar
Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento
Do mar
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder
Anda alguém
Pela noite
De breu
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer
Vejam bem
Daquele homem
A fraca
Figura
Desbravando
Os caminhos
Do pão
E se houver
Uma praça
De gente
Madura
Ninguém vem
Levantá-lo
Do chão
José Afonso

Vejam bem, não se paga para ver...
comemorando já os 30 anos do 25 de Abril 74